O ano em que o Brasil abraça de vez o pagamento digital
15 de maio de 2020


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Se o “crédito ou débito?” representou a quase total desaparição do “dinheiro ou cheque?” nos caixas de norte a sul, a nova revolução nos meios de pagamento parece estar mais focada na plataforma do que na forma. Com o perdão do jogo de palavras, basta olhar para os números para notar que os meios de pagamento eletrônico ganham cada vez mais espaço entre os consumidores brasileiros tanto no varejo como no comércio eletrônico.

Uma pesquisa recente da plataforma Capterra com brasileiros que integram o mercado de trabalho aponta que 59% dos entrevistados já realizaram operações aproximando o celular das maquininhas de pagamento, no chamado contactless. Outro estudo recém-publicado pela revista Mobile Time indica crescimento de 35% nesse tipo de transação entre setembro de 2019 e março deste ano.

Grandes bandeiras de cartão, como Mastercard, já discutem o aumento do limite para transações contactless sem necessidade de inserir senha

Com o distanciamento social e a adoção de novas medidas de higiene provocados pelo novo coronavírus, grandes bandeiras de cartão, como Mastercard, já discutem o aumento do limite para transações contactless (com dispositivos móveis ou cartões) sem a necessidade de inserir senha, hoje limitadas a R$ 50.

Mas o que esperar de tal mudança de hábito em um país que, ao mesmo tempo que ocupa as primeiras posições em rankings mundiais de fintechs, tem uma grande parte da população dependente da economia informal e do pagamento em dinheiro? Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são 60 milhões de desbancarizados no Brasil.

Padronização de pagamentos

Uma das dores de cabeça atuais de comerciantes e consumidores na hora de utilizar carteiras digitais é a falta de padronização dos dispositivos e das máquinas. O projeto para pagamentos instantâneos PIX, lançado recentemente pelo Banco Central (BC) e com previsão de implantação em novembro, busca acabar com esse problema.

A iniciativa integra a agenda BC, projeto para modernizar o sistema financeiro nacional. Ainda em fase de teses, o PIX abrange diversas frentes. Na primeira delas, serviria como substituto das velhas TEDs e DOCs ao adotar chaves ou apelidos (como número de telefone, CPF, CNPJ ou email) utilizados para a identificação da conta para qual o dinheiro será transferido. Diferentemente das transações atuais, com restrições de horário e dias da semana, o PIX estará disponível 24 horas e nos 365 dias do ano.

Na hora do pagamento, o número de celular fornecido, por exemplo, será localizado no DICT, e o recebedor será identificado de forma segura e prática

Tal facilidade será permitida graças a um diretório gerido pelo BC com toda a informação dos recebedores, no chamado Diretório de Identificadores de Contas Transacionais (DICT), que armazenará os dados das contas. Na hora do pagamento, o número de celular fornecido, por exemplo, será localizado no DICT, e o recebedor será identificado de forma segura e prática.

Na Espanha, o Bizum, um serviço semelhante adotado pelas principais entidades financeiras do país, como Santander e BBVA, registrou mais de 60 milhões de operações em 2019 no valor de 2,7 bilhões de euros (cerca de R$ 17 bilhões).

A segunda aposta do BC com o PIX são os pagamentos com QR code, que também vêm crescendo entre os consumidores brasileiros, como aponta o Capterra. Aqui, o principal detalhe é a instauração do “BR Code”, um padrão único de código QR que pode ser lido por diversos dispositivos com câmera. Hoje, as máquinas com a opção de pagamento por QR code disponíveis nos estabelecimentos somente aceitam transações de clientes da própria instituição que disponibiliza o equipamento ou de poucos conveniados.

Com o BR Code, o objetivo é evitar a confusão de máquinas, semelhante ao que acontecia há alguns anos, quando os equipamentos apenas aceitavam certas bandeiras de cartão

Com o BR Code, o objetivo é evitar a confusão de máquinas, semelhante ao que acontecia há alguns anos, quando os equipamentos apenas aceitavam certas bandeiras de cartão. Em outras palavras, o mesmo código valerá para pagamentos com diferentes arranjos, que envolvem três elos: instituições financeiras, empresas que fornecem as máquinas e bandeiras de cartão. O usuário poderá escolher o que quer utilizar e a máquina processará o pagamento de acordo com o sistema escolhido.

Unida à proliferação dos bancos digitais, a facilidade desses tipos de pagamento pode representar um grande incentivo à adoção por milhões de brasileiros. Além disso, como na prática todas as instituições financeiras terão de adotar o sistema, as chances de popularização aumentam. Entre as questões em aberto ainda estão as tarifas das transações, que devem ficar mais baratas, e a implantação de um novo suporte para pagamentos por aproximação.

Open banking

Outro ponto da agenda do BC é o open banking, apresentado em 4 de maio. Segundo a instituição, a nova regulamentação permitirá, desde que haja consentimento prévio do cliente, “o compartilhamento padronizado de dados e serviços por meio de abertura e integração de sistemas, por instituições financeiras, instituições de pagamento e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central”.

Bancos e caixas econômicas, classificados como S1 e S2 pelo BC, serão obrigados a participar. Com essa troca de informações, mudar de banco, por exemplo, seria muito mais fácil, semelhante ao que ocorre hoje com as operadoras de celular. A implantação será feita em quatro fases e começará em novembro, coincidindo com o início previsto para operação do PIX. O processo deve durar até outubro de 2021.

Ainda há incertezas entre bancos e fintechs sobre diversos pontos da nova regulação, e a crise do novo coronavírus também provoca dúvidas sobre o cronograma. Vale lembrar que outra lei importante relacionada ao tratamento de dados dos consumidores, a Lei Geral de Proteção de Dados, que deveria entrar em vigor em agosto, foi adiada para maio do ano que vem.

À espera de mudanças

As mudanças no cenário de pagamentos e transações financeiras serão muitas e refletem um mercado aquecido: duas fintechs nacionais já alcançaram status de unicórnio (startups com valor de US$ 1 bilhão ou mais) e diversas empresas estão na fila para alcançar o posto, como a plataforma de contabilidade Conta Azul e o app de administração financeira para pessoas físicas Guiabolso.

As incertezas provocadas pela crise do novo coronavírus podem, no entanto, atrasar os investimentos.

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Lucca Rossi, autor deste texto opinativo, é analista de conteúdo e pesquisa do site de avaliações e comparação de softwares Capterra, no qual escreve sobre tecnologia e produz estudos sobre tendências na área para pequenas e médias empresas.