SÃO PAULO – “Eu sou CTO em uma empresa com sede na Austrália e moro em João Pessoa. Entrei na empresa em 2015 enquanto estava no país, e desde 2016 estou no Brasil e trabalho remotamente. Sem dúvida nenhuma, o maior desafio é o fuso-horário: às vezes a diferença daqui para lá chega a 13h”, explica Igor Leal Antunes, CTO da Germanicos Bespoke Tailors, uma fabricante australiana de ternos e roupas masculinas.
“Eu trabalho para uma empresa americana de tecnologia desde 2017 morando em Florianópolis. Eu já fazia tudo de forma remota, mas enfrentar uma crise dessa maneira foi algo novo”, afirmou Max Nunes, programador da InVision, empresa que fornece uma plataforma digital para criação de aplicativos.
Julia Wypyszynski, customer success para a Pointy, serviço do Google de gerenciamento de sistemas para empresas, tem uma história mais recente com o home office internacional. “Eu moro em Dublin e trabalhava presencialmente na unidade do Google de lá. Quando a pandemia chegou, começou o home office e decidi vir para o Brasil rever a família – esperando que ia durar um mês. Estou aqui há mais de um ano, com uma previsão de voltar para o escritório em setembro. Mas os prazos já foram adiados algumas vezes”, explicou.
Histórias diferentes que se conectam por um ponto em comum: brasileiros trabalhando no formato home office para empresas que estão em outros países. Com a chegada da pandemia, a migração do presencial para o home office foi forçada para muitos profissionais. A adaptação não foi simples diante das circunstâncias, mas pouco mais de um ano depois, desenvolver uma carreira internacional de casa já é possível.
O InfoMoney conversou com especialistas em carreira para entender se esse novo formato é tendência, quais as áreas de destaque, se o brasileiro está sendo demandado e também pegou dicas de como começar uma carreira internacional estando no Brasil. Confira os destaques.
Tendência?
O consenso entre os especialistas é de que a modalidade home office internacional já era uma tendência antes da pandemia, mas que a possibilidade foi ampliada diante das circunstâncias globais que as empresas estão lidando.
“Já é realidade. É a chance que as empresas têm de buscar talentos em qualquer lugar. É conseguir desenvolver um projeto sem necessariamente estar fisicamente no local. A pandemia escancarou essa possibilidade e a tecnologia cada vez mais está avançando na direção de facilitar as trocas de sistemas, conversas, e gestão”, avalia Antônio Gil, sócio e líder da área de performance de recursos humanos de Impostos da EY, antiga Ernst & Young.
Pavel Kerkis, líder global de atendimento ao cliente da consultoria Korn Ferry, acrescenta que, além da facilidade, contratar um funcionário remoto é muito mais barato do que expatriá-lo para outro país. “Com a pandemia as coisas aconteceram ao mesmo tempo: o home office virou a regra para muitas companhias e a crise desincentivou as empresas a gastarem a mais com um profissional que poderia muito trabalhar muito bem mesmo em outro país”, explica.
Segundo ele, porém, sempre há exceções. “Geralmente, profissionais mais qualificados, mais sêniores, C-level com posições regionais, por exemplo, tendem a precisar estar na região que administram. Então, mesmo se um gerente de vendas da Europa, está no Brasil durante a pandemia para ficar com a família, muito provavelmente essa posição deve ser deslocada para a Europa quando for possível. Mas de maneira geral estamos vendo que o home office internacional vem funcionando muito bem”, pondera.
Kerkis comenta que a própria Korn Ferry realizou quatro transferências nos últimos meses e nenhuma com expatriação de funcionário. “Adotamos um formato em que encerramos o vínculo do profissional aqui e abrimos um outro no país no qual ele ficará. É contratado conforme a respectiva lei do país em que mora”, diz.
Gil acrescenta que vem observando que esse deslocamento de profissionais é feito pela empresa somente em caráter de emergência. “Hoje, há dificuldades em trazer e levar profissionais de um país para o outro devido às fronteiras fechadas e à pandemia ainda em andamento. Mesmo assim, daqui para frente as novas designações internacionais devem acontecer somente em extrema necessidade de o talento estar perto da operação”, explica.
Rebeca Toyama, especialista em estratégia de carreira, explica que outro fator que impulsionou essa modalidade de home office internacional foram as fusões e aquisições de empresas. “Já era uma tendência também por conta do alto volume de fusões e aquisições pré-pandemia. Empresas de locais diferentes se unindo acelerou a carreira internacional de muitos profissionais mesmo à distância”, explica.
De fato, em 2019 o Brasil bateu recorde pelo terceiro ano seguido: foram 1.231 transações de fusões e aquisições, de acordo com dados da consultoria KPMG.
“E é importante entender que o home office não é temporário, bem como esse formato internacional. Estávamos muito presos ao modelo presencial e a pandemia derrubou essa lógica em um strike. Por hábito e com o tempo, vamos nos acostumar e aprender a extrair resultados cada vez mais eficientes com o trabalho remoto”, avalia Rebeca.
Na mineradora Nexa Resources, por exemplo, a política de home office já era válida mesmo antes da pandemia, e a empresa anunciou um programa que vai permitir os colaboradores aderirem a modalidade de trabalho 100% remoto mesmo no pós-pandemia.
“O benefício de trabalhar até duas vezes por semana em casa já estava implementado e aqueles que não estiverem nessa modalidade ainda poderão fazer uso da política de home office. Isso expande as possibilidades de escolha das pessoas e nossa flexibilidade de olharmos para talentos além do Brasil e Peru”, explicou Gustavo Cicilini, vice-presidente de desenvolvimento humano da empresa. Essa opção de teletrabalho vale para funcionários no Brasil e Peru, apenas, mas a empresa também tem equipes nos Estados Unidos e em Luxemburgo.
Busca por brasileiros
Nesse cenário em que o home office ganhou força no Brasil e no mundo, os brasileiros podem ser alvos de grandes empresas ao redor do globo. “Com o real desvalorizado frente ao dólar e outras moedas, talentos brasileiros são considerados baratos para as empresas estrangeiras ainda mais se puderem trabalhar de forma remota”, diz Gil.
Kerkis destaca que a visibilidade positiva é maior sobre executivos brasileiros, que são profissionais mais experientes, e com posições de liderança. “O líder brasileiro é bem visto porque vem de um ambiente de altos e baixos. A montanha russa econômica e os diversos cenários que enfrentamos criam profissionais dinâmicos e adaptáveis às mudanças. E isso é atrativo, porém, vemos esse tipo de análise com executivos e profissionais mais seniores”, explica.
Segundo Rebeca, de fato, as empresas estão aproveitando esse momento para mapear talentos, mas os brasileiros não são os primeiros da fila nessas buscas por algumas razões. “Mão-de-obra de qualidade e a baixo custo geralmente não são itens fáceis de se encontrar e hoje há mais oportunidades, afinal não é preciso estar fisicamente no mesmo local. Porém, embora o brasileiro seja visto internacionalmente como um profissional capaz de inovar e bastante criativo, é questionado por disciplina e planejamento. Além disso, a capacidade do Brasil em qualificar mão-de-obra está muito aquém do esperado. A demanda poderia ser maior”, afirma.
A XP Inc., por exemplo, está com mais de 600 vagas abertas e buscas brasileiros em diversas áreas sem nenhuma limitação de localidade. “Com a pandemia foi possível ampliar o leque de possibilidades. Podemos buscar talentos independentemente de onde estejam”, afirma Dalal Ghosn, head do XP Anywhere, área da empresa responsável pela implementação. Atualmente, a XP tem funcionários trabalhando no Uruguai, Estados Unidos, Canadá, Portugal, Holanda, entre outros.
Tecnologia é destaque
O InfoMoney fez uma reportagem sobre os segmentos em alta em 2021, com destaque para a alta demanda no setor de tecnologia, observada também pelos especialistas consultados.
“A área de tecnologia tem muita demanda para toda a cadeia engenheiros de softwares, segurança da informação, cientista de dados, entre outras posições. Há déficit de talentos nesse setor em muitos lugares. Há bastante demanda por profissionais dessas áreas”, explica Gil, da EY.
Kerkis conta que na Korn Ferry também observou uma demanda por profissionais da área de atendimento ao cliente, que falam outros idiomas para atender clientes ao redor do mundo. “Geralmente são contratos de home office internacional em uma esquema freelancer para prestar o serviço por um período determinado. Mas tecnologia é que tem mais volume de busca”, pontua.
Como fazer uma carreira internacional de casa?
Começar uma carreia internacional sem sair de casa não era uma possibilidade tão discutida antes da pandemia. Mas passado um ano desde que a crise sanitária teve início, mais profissionais podem começar a considerar essa opção. O InfoMoney separou as principais dicas para quem quer partir por esse caminho.
Idioma é necessário
Rebeca diz que saber um segundo ou terceiro idioma de forma avançada, ou (preferencialmente) ter fluência é crucial para desenvolver uma carreira internacional mesmo estando em casa.
“Parece óbvio, mas nem todo mundo tem facilidade de desenvolver novas línguas, ter o domínio do idioma é importante para a comunicação, interpretação, opinião e compreensão da parte técnica em muitos casos”, explica.
O programador Max Nunes, que trabalha na InVision, afirma que o idioma segue sendo um desafio mesmo já trabalhando para a companhia há quatro anos. “Meu maior desafio foi o idioma. O dia a dia ajuda, mas como tabalho com programação, a linguagem principal é a dos códigos. Sigo aprendendo o inglês”, explica.
Tarunã Almeida, coordenador de supply chain, da Siemens Gamesa, empresa de energia renovável, conta que no dia a dia lida com pessoas da Dinamarca, Espanha e o idioma é crucial para executar seu trabalho. Ele foi contratado em outubro e trabalha remotamente de Salvador, onde mora, para a companhia que tem sede na Alemanha.
“Eu vi com bons olhos a oportunidade de trabalhar em uma empresa global. Evoluo rapidamente minha fluência em inglês e espanhol. Tenho reuniões com pessoas de vários lugares do mundo”, conta.
Adaptação à cultura do país
Um desafio apontado pelos especialistas em relação à construção da carreira internacional sem sair de casa é se adaptar à cultura da empresa e à do país à distância. “Você tem que se adequar a cultura de uma empresa multinacional, que, por vezes, tem outro tipo de frequência de contato, de feedback, de piadas, além do idioma”, alerta. Segundo ela, uma dica importante para quem quer iniciar uma carreira internacional é buscar se inteirar dessa cultura da empresa.
“Considerando que a intenção é começar aqui e depois ir para fora: por exemplo, o profissional quer trabalhar para uma empresa que tem sede na França. Assista canal de notícias de lá, veja séries, faça um mapeamento dos jornais, etc, para observar a postura, os gestos, as atitudes, e para estar alinhado com os gestores que são de outro país. Isso ajuda muito na integração e pode render pontos positivos logo de cara. Faz parte do processo de construção de identidade de um profissional internacional”, diz.
Outro ponto importante nessa adaptação é o fuso-horário. Antunes, que trabalha na Germanicos Bespoke Tailors, da Austrália, conta que precisou adaptar seu horário e ser muito eficiente na comunicação considerando um fuso tão diferente. “Hoje em dia o meu normal é ir dormir todos os dias entre quatro e cinco horas da manhã e acordar meio dia. Já estou totalmente acostumado e me sinto muito mais produtivo trabalhando de madrugada sem ninguém me atrapalhando”, conta.
Com um fuso diferente e à distância, porém, a comunicação passou a ser de extrema importância. “Toda mensagem seja via Skype ou e-mail tem que ser bastante objetiva sem muito espaço para interpretação dúbia. Aprendi isso no dia a dia”, conta. O InfoMoney fez uma reportagem explicando as diferenças entre a comunicação síncrona e assíncrona e a importância de saber usá-las.
Aproximação com o gestor
Kerkis explica que se a pessoa estiver empregada em uma multinacional com presença em outros países que tem vontade de atuar, precisa iniciar a construção deste plano com seus gestores atuais.
“Construir networking dentro da organização com colegas das filiais globais ou mesmo um possível futuro chefe em um escritório específico é fundamental. Muitas vezes as transferências não possuem apenas uma conotação técnica, mas a relação e imagem do profissional com os colegas do país que pretende ser transferido, assim como a experiência prévia e destaque na atuação em projetos globais multiculturais”, explica.
Ele ressalta, no entanto, que a transferência entre países não é algo que acontece quando o empregado quer. “Depende de fatores como o momento da empresa, cenário externo, disponibilidade de vaga no respectivo destino e mais importante: a forma como o empregado aborda e administra a sua intenção com a sua atual liderança”, diz.
Almeida explica que viu na sua transição de uma empresa nacional para uma multinacional em outubro do ano passado justamente essa possibilidade de aproximação. “Foi uma oportunidade boa e que me mais exposto à chance de trabalhar em outro país em algum momento mais para frente”, avalia.
Busca por competências
Apesar da boa relação ser importante, as competências técnicas e emocionais também precisam ser levadas em consideração. “Se o profissional quer uma carreira internacional deve ficar atento ao que o país exige ou procura. Uma boa forma de se alinhar é olhar as competências compartilhadas pelo Fórum Econômico Mundial, que tem uma visão global das habilidades que estão em alta”, orienta Rebeca. Confira aqui quais são as habilidades.
“Se seu perfil e experiência se encaixarem nas habilidades e características demandadas no país, comece uma busca ativa no Linkedin e outros portais de vagas para se candidatar ativamente às posições. Tente achar quem são os responsáveis pelos anúncios nestas empresas ou consultorias de recrutamento e faça um contato direto de forma estruturada e educada. Mas sempre se atente ao que a vaga exige, como visto de trabalho, línguas, formações e certificações válidas naquele país”, complementa Kerkis.
Dedicação
Segundo Rebeca, o profissional não pode se iludir com o desejo de trabalhar fora. “Há vagas? Sim, mas para quem se prepara e não é um processo fácil. É preciso estudar, separar tempo para se preparar, eventualmente tirar certificações, fazer entrevistas e levar algumas negativas. Mas é preciso se dedicar e não desistir. Busque vagas adequadas ao seu perfil, nível de carreira e segmento”, sugere.
Atenção aos documentos
Muitos profissionais que querem iniciar a carreira internacional aqui têm a intenção de mudar de país em algum momento. Kerkis faz um alerta sobre esse tema: “antes de tudo é necessário reunir todos os seus documentos, certificados e diplomas ter a certeza que eles terão validade acadêmica no país que você deseja conseguir um emprego”.
Segundo ele, brasileiros que possuem dupla nacionalidade (em especial portuguesa, espanhola, e italiana) têm uma vantagem nesta frente porque o processo de contratação tende a ser mais fácil no outro país.
“Isso porque eles seriam contratados como se fossem profissionais locais frente a legislação da União Europeia, por exemplo. Caso não tenham cidadania o processo como um fica um pouco mais complexo”, explica.
Outro ponto destacado por Gil, da EY, tem relação com a tributação e pagamento de impostos. “O profissional precisa se organizar e entender o tipo de contrato que tem com a empresa multinacional. A depender de como recebe o salário, por exemplo, se é em dólar ou euro, precisa pagar alguns impostos específicos, seja como pessoa física ou jurídica por residir no Brasil”, explica.
A XP Inc., por exemplo, explicou que segue à risca a legislação brasileira mesmo com seus funcionários trabalhando em outros países. “Todos os funcionários que estão localizados em outros países recebem em real e têm seus benefícios conforme a regulação daqui. Alguns tiraram os vistos necessários para trabalharem para uma empresa brasileira conforme a legislação”, explica Dalal.
Antunes explica que seu salário é fixado em dólar australiano, mas que recebe em reais aqui no Brasil por meio de remessas internacionais. Já o programador Nunes, que recebe em dólar, conta que tem uma conta pessoa jurídica para receber e arca com todos os impostos necessários.
Por Giovanna Sutto